terça-feira, 14 de junho de 2011

"Há alguém além do céu que me ama como filho".


HÁ ALGÉM ALÉM DO CÉU,
QUE ME AMA COMO FILHO

Naquele tempo uma das gratas satisfações de Dona Maria Geraldina era mandar-me para as aulas de catecismo que se realizavam na igreja todo domingo de tarde.

Tinha eu 7 anos. A igreja ficava defronte de casa e por trás dela tinha um campinho onde jogávamos futebol depois dos afazeres religiosos. Dona Maria queria que eu aprendesse logo os Mandamentos da Lei de Deus, os Sacramentos da Igreja, os Pecados Capitais, os Dons do Espírito Santo, enfim, as orações, conhecimentos e comportamentos fundamentais de um crente católico para que eu já estivesse preparado quando chegasse o tempo da minha Primeira Comunhão.

Numa das aulas a professora falou sobre a existência de Deus e seu poder infinito. Disse que Deus é um Espírito puro, perfeitíssimo, Criador do céu e da terra, dos animais que voam, nadam, se arrastam e andam, especialmente os homens porque foram criados à sua imagem e semelhança, e que Deus tudo vê e está em todos os lugares. Esta afirmação germinou em mim um bocado de interrogações. Um ser que me vê e não O vejo e que está em todos os lugares, como é que pode?... É um mistério, disse também a professora parecendo adivinhar os meus pensamentos, e mistério não se compreende, crê-se pela Fé, completou. Fé? Que é Fé? E mistério, o que é?... Aí é que eu fiquei confuso, mas atento ao que a mestra religiosa falava como se ouvisse uma fábula de "Príncipe Encantado", daquelas que Dona Maria me contava toda noite ao embalar-me para dormir...

Quando a professora afirmou que Deus é boníssimo, que atende a todos os nossos pedidos quando feitos com sinceridade, porque Ele é bom Pai, apareceu na minha cabeça no meio da confusão, não sei de onde e nem como, a idéia de pedir-Lhe dinheiro para comprar pirulito. Aqueles pirulitos encartuchados conicamente em papel manilha que eram vendidos pelas ruas da cidade!...

Assim, atordoado com tanta coisa extraordinária pululando na minha mente comecei a observar tudo dentro da igreja. Salãozão cheio de bancos perfilados e de altares de santos encravados nas paredes; teto abobadado com inúmeros candelabros pendurados; algo quando caía no chão o barulho por mais fraco que fosse ecoava por toda parte... À minha frente, o púlpito do sacerdote fazer sermão e mais adiante para a direita, o presbitério com o altar-mor pregado na parede ao fundo e sobre ele a imagem imponente de Santo Antônio, o padroeiro dos alenquerenses, de olhar sereno e amoroso com o Menino Jesus nos braços. Abaixo dela, mas suspensa no ar, uma luz vermelha sinalizando o Sacrário embutido na parede sobre o altar. A mestra tinha dito que esta luz indica a presença de Deus no Sacrário, por isso, toda vez que a gente passar diante dele tem de ajoelhar-se em sinal de adoração, louvor, respeito... Nas paredes, à minha esquerda, a imagem de Jesus, e, à minha direita a da Virgem Maria, cada qual com seu sagrado coração exposto, pareciam confirmar as palavras da professora.

Eu observava tudo isso, quieto entre os coleguinhas, com vontade de ir até o Sacrário pedir dinheiro a Deus para comprar pirulito. Porém, o Sacrário ficava alto demais e para chegar até ele eu teria que subir no altar-mor, que também era alto. Além disso, a professora podia não gostar porque, segundo ela, é sobre o altar que o Espírito Santo, através do sacerdote, transforma o pão e o vinho no Corpo e Sangue do Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que se sacrificou para nos salvar...

Terminada a aula, saí pela sacristia cismado com as palavras da professora ecoando dentro de mim: “Deus está em todos os lugares”, “Ele é bom Pai”... Queria pedir-Lhe dinheiro para comprar pirulito, mas como pedir se não O via? Assim, nem quis ficar para brincar de bola como de costume, resolvi ir para casa ver se conseguia algum tostão com mamãe, a Dona Maria Geraldina...

Caminhando para casa, embatucado com Deus e o pirulito na cabeça observava tudo o que via a meu redor, tudo parecia ter vida: a amplidão do céu azul e as nuvens movimentando-se lentas e macias, transformando-se aqui e retransformando-se ali... O sol brilhante como um imenso olho a olhar-me... O folharéu exuberante das mangueiras e benjaminzeiros contornando a praça da igreja escondendo secretamente ninhadas de passarinhos... As pessoas indo e vindo, umas atravessando a praça, outras pelas ruas que contornam a praça, passos calmos e cadenciados... Os soldados de polícia conversando no canto da delegacia... Tudo dava-me a impressão de que Deus estava realmente em toda parte, até mesmo dentro de meu bolso vazio, mas cadê Ele? Ao passar junto do pára-raios da igreja, a ânsia pelo pirulito e a dúvida sobre Deus eram tão grandes, que não suportei: - Se Ele existe que faça aparecer um dinheiro na minha frente!... Nisto que exclamei, vi no chão algo tremeluzir. Uma moeda, pensei. Dez tostões, imaginei. O meu coração disparou. Fiquei com medo. Senti-me sozinho. Ele existe. Eu pecava. Ía para o inferno. Sim, a professora disse também que se a gente duvidasse da existência de Deus, pecava e ía para o inferno, fogo ardendo, chamas imensas, gente chorando, gemendo de agonia, gritando de dor... Com todo este dilema se desenrolando na minha cabeça, abaixei-me para apanhar aquilo que luzia no chão, precisava dele para comprar pirulito, principalmente os de peroba, que até já podia sentir o sabor na boca! Mas, à proporção que me abaixava para pegá-lo, uma desarrumação foi tomando conta do meu corpo, tudo dentro de mim foi ficando em rebuliço, um misto de angústia e frustração me dominando, a moeda tomava forma de uma cortiça de tampinha de garrafa de guaraná suavemente coberta por finos grãos de areia. Instintivamente, pus-me de pés e olhei para cima, pressentia alguém divertir-se às minhas custas, mas não vi ninguém. Olhei para trás e vi meus colegas começando o jogo de bola. Retornei para junto deles. A vontade pelo pirulito tinha passado, me sentia meio arrependido, meio envergonhado, mas sereno. A confusão na minha cabeça também tinha passado...

Brincando com os colegas e já totalmente esquecido do ocorrido, Seu Luiz Martins, passando por ali para assistir futebol no campo em frente à Prefeitura, chamou-me. Ele estava defronte da casa dos padres com um vendedor de pirulito ao lado. Corri até ele...


Voltava para casa. Ao passar outra vez diante do pára-raios notei alguma coisa no bolso. Era a cortiça que tinha guardado. Instintivamente, olhei novamente para cima, como não vi ninguém, joguei-a fora, e saí correndo aos pulos no rumo de casa, saboreando os pirulitos que papai comprara para mim...

Em 2004, fui ordenado diácono da Igreja, aos 61 anos... Sempre que vejo uma criança na igreja a observar o sacrário, o altar, as imagens dos santos, enfim, admirar as nuanças religiosas que impregnam o interior do templo, é como se fosse eu naquele tempo e cada vez que conto este fato sinto-me aliviado, pois nele há uma mensagem especial para a criança que vive dentro de você...

Diácono Eliezer de Oliveira Martins
Arquidiocese de Belém - Pará.

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